A personagem que ninguém descreve, mas todo mundo reconhece
Sedutora, egoísta, carismática — e nada disso é dito. É mostrado.
Você sabe que está diante de uma grande personagem quando, depois de cem páginas, ainda não consegue descrevê-la em uma frase — mas sabe exatamente quem ela é. Sente que poderia reconhecê-la se a visse num café. Sabe como ela se sentaria. O que observaria. O que esconderia.
Agora compare com certos livros contemporâneos, onde a personagem é apresentada com três adjetivos na primeira linha:
Forte. Determinada.Sensível.
E pronto. A descrição vira definição. E a definição, sentença. O resto do livro? É só o autor tentando provar o que já afirmou.
Com Anna Kariênina, acontece o oposto.
Tolstói nunca nos diz que ela é sedutora. Nem que é egoísta. Nem que é trágica. Mas a gente sabe. A gente sente. A gente deduz — sem que nada seja mascado.
E é aí que mora a lição: bons personagens não precisam ser ditos. Eles se mostram.
A força do não-dito
Quando Anna aparece pela primeira vez, ela não é apresentada com pompa. Ela chega, literalmente, de trem. E basta um olhar entre ela e Vronsky para que algo comece — mas não é o narrador que diz. É o detalhe. A linguagem indireta. O deslocamento mínimo no gesto, no olhar, no que ela tenta esconder e no que, sem querer, revela.
Aqui está o trecho em tradução de Boris Schnaiderman (Companhia das Letras):
“Os olhos cinzentos e brilhantes, que pareciam escuros por causa dos cílios espessos, pousaram amigáveis no rosto de Vronski. Parecia que o haviam reconhecido e tentavam lembrar. Ela, subitamente, desviou os olhos dele e voltou-se para o irmão. O gesto foi tão natural que Vronski teve tempo de observar a expressão contida que parecia cintilar no rosto dela, nos olhos e no leve sorriso dos lábios.”
E um pouco depois:
“Era como se um excesso de vida transbordasse involuntariamente dela, apesar da tentativa evidente de contê-lo. [...] E Vronski teve a sensação de que jamais na vida vira uma mulher como aquela.”
Nenhuma frase do narrador afirma: “Anna é sedutora”. Nem “eles se apaixonaram à primeira vista”.
Pelo contrário, Tolstói descreve os olhos, o leve sorriso, a postura. Logo, o efeito é outro: a sensação de que ali tem algo. Um magnetismo. Uma presença.
Não há um letreiro dizendo “personagem complexa chegando”. Só o desconforto suave de quem lê e pensa: “tem algum negócio acontecendo aqui”.
Personagens não são perfis de LinkedIn
Anna não é uma mulher “forte” no sentido de Pinterest. Ela é forte porque resiste a um casamento sem amor. Mas também é frágil, porque precisa da validação do outro. É sedutora, mas não de propósito. É mãe, mas abandona o filho. Ama, mas destrói.
Ela não é coerente. Ela é consistente. E isso é muito mais difícil de escrever — e ainda mais raro de encontrar.
O problema de muitos romances atuais é a tentativa de encaixar o personagem em arquétipos prontos: “a protagonista feminista”, “o homem sensível e introspectivo”, “o vilão carismático que é só mal-entendido”. O resultado? Personagens que parecem mais slides de apresentação que gente viva.
Anna Kariênina, ao contrário, oscila. E isso não é erro de construção. É exatamente o que a torna convincente.
O ponto cego dos clichês bem-intencionados
Existe uma obsessão recente por criar personagens que sejam, de saída, modelos. Referências. Exemplo de força, resiliência, moralidade. E embora isso tenha seu valor — a gente precisa de representações —, há um risco grande aqui: transformar a personagem em um conceito.
Tolstói não faz isso. Anna não é um conceito. É uma mulher aristocrata, com as contradições do seu tempo e do seu contexto. Ela tem poder, mas não liberdade. Tem um filho, mas não o direito de ser quem é. E quando escolhe o amor, escolhe também a ruína.
E o mais importante: não somos convidados a aplaudi-la. Somos convidados a compreendê-la.
Como Tolstói escreve isso?
Com uma coisa chamada sutileza.
Veja a cena do baile.
“Kitty esperava vê-la vestida de lilás, como haviam combinado. Em vez disso, Anna usava um vestido preto de veludo, decotado, que deixava à mostra o colo, os ombros e os braços de marfim. No vestido não havia um único adorno, exceto uma grinalda de capins escuros entre os cabelos e um colar de pérolas no pescoço. [...]
Kitty via Anna todos os dias, mas, naquele momento, ela parecia inteiramente diferente. Um encanto novo, inesperado, envolvia todo o seu ser. Anna estava encantadora com aquele vestido simples e com aquele ar de modéstia contida — e Kitty compreendeu que ela havia subestimado seu poder.”
O vestido, o impacto silencioso, o olhar de Kitty. Aqui, o narrador nunca diz que Anna quer provocar. Mas o efeito é evidente.
A tensão não está em como o vestido é descrito, mas no efeito que ele causa nos outros — especialmente em Kitty, que começa a ver Anna de outro modo. Tolstói não escreve “ela era provocante” ou “ela queria se destacar”. Ele mostra como a presença de Anna desmonta a expectativa alheia.
Mais tarde, em um trem, Anna lê um romance e se projeta na protagonista. É um momento de espelho. Ela fantasia, deseja, se confunde:
“Sentiu uma ânsia desmedida de viver por si mesma. Lia como heroína do romance: cuidava de um doente, discursava no Parlamento, provocava a cunhada, saía a galope numa caçada. [...]
Nada havia para ela fazer. Anna, apertando a espátula com força nas mãos, relia sem entender uma linha, só para manter a ilusão de leitura.
De repente, ergueu os olhos com um sobressalto, como se não soubesse se o trem estava indo para frente ou para trás. [...]
‘Serei eu mesma... ou outra?’ — pensou, assustada com os próprios pensamentos.”
Anna lê, imagina, se desloca mentalmente — e se perde. Mas Tolstói não precisa dizer “ela está em crise”. Ele mostra o embaralhamento da percepção, o desejo de viver algo fora do papel esperado, o desconforto com a própria identidade.
E é isso que falta em tanta ficção rasa: o direito do leitor de interpretar.
O leitor como cúmplice, não como consumidor
Tolstói exige de quem lê. Ele entrega, mas não embala. E isso muda a experiência.
Com Anna, somos cúmplices — não espectadores. Participamos da formação daquela mulher. Não apenas a seguimos.
O autor que diz tudo o tempo todo não confia no leitor. Quer controlar a leitura, o julgamento, a emoção. Tolstói não. Ele nos entrega fragmentos, camadas, momentos. E deixa que a gente monte o quebra-cabeça. Ou não. Depende de quanto queremos ver.
Em conclusão…
Você não precisa gostar de Anna. Pode até odiá-la. Mas não tem como dizer que ela é mal escrita. Porque ela existe. Fora da página. E é isso que Tolstói ensina: criar personagem é construir presença. Não rótulo. Não fala pronta. Presença.
E presença, como a da Anna, é o que fica quando o livro termina.