Como reconhecer um personagem mal escrito em 3 frases
Se ele muda de vida do nada, reage como se nada, ou ama quem destrói tudo, desconfie.
Toda história começa com uma promessa: algo vai acontecer. E para isso acontecer, alguém precisa agir. Esse alguém é o personagem. E é ele — não a trama em si — que faz a literatura acontecer de verdade.
Só que tem livro por aí em que os personagens não agem: eles reagem mal, falam frases que não combinam com quem são, tomam decisões convenientes para o enredo, e no fundo parecem... fantasmas.
Se movem sem peso.
Sentem sem causa.
E de repente mudam.
Assim, do nada.
É por isso que hoje eu quero te ajudar a reconhecer um personagem mal escrito. Aqueles que existem mais na cabeça do autor do que no corpo da narrativa. Que parecem mais um boneco articulado que um ser ficcional com consistência. E, como prometido no título, vou te dar três frases que você pode usar como alerta. Se um personagem se encaixa nelas, ligue o sinal amarelo.
ALERTA DE SPOILER:
Vou falar de É Assim Que Acaba e como sua escrita é ruim – com embasamento lógico. Se você já irá se sentir ofendido, melhor sair daqui.
1. “Do nada, eu decidi mudar de vida.”
Esse é o clássico. O personagem vive uma coisa a vida inteira — odeia plantas, por exemplo — e na página 97 decide abrir uma floricultura. Por quê? Porque sim. Porque o autor quis.
Não há nenhum indício anterior, nenhuma construção lenta, nenhum conflito interno.
É o que acontece em É Assim Que Acaba, quando Lily Bloom resolve empreender com flores como quem muda de aba no navegador. Até cinco páginas antes, ela nunca tinha mostrado nenhum interesse especial por botânica. Mas o enredo exigia que ela tivesse um sonho “bonito”. Pronto: nasceu a vocação.
A boa literatura mostra a transformação como processo. Mesmo uma mudança radical precisa ter rachaduras visíveis antes de virar ruptura. Personagens reais mudam porque algo dentro deles entra em conflito. E o leitor precisa ver isso.
2. “Aconteceu algo terrível… e eu reagi como se fosse um anúncio do YouTube.”
Aqui está outro indício: as reações não condizem com a gravidade da situação. O personagem descobre uma traição, ou perde alguém, ou apanha de alguém que ama — e a reação é uma meia frase solta, uma lágrima isolada, ou pior: tesão.
Sim, tesão. Em É Assim Que Acaba, há uma cena em que o namorado agride a protagonista e, imediatamente depois, a narrativa mergulha numa reconciliação quente. O pedido de desculpas é erotizado. A dor é suavizada por desejo. A narrativa romantiza aquilo que deveria ser tratado com atenção, complexidade e camadas.
Atenção: isso não é sobre moralismo, mas sobre verossimilhança psicológica. Quando a narrativa trata a violência como reviravolta de série adolescente — sem consequências profundas — o problema não é só de gosto, mas de escrita mesmo.
3. “Eu amo quem me destrói.”
Não me entenda mal: a literatura é cheia de amores destrutivos. (O Morro dos Ventos Uivantes, por exemplo, é praticamente um estudo de caso.) Mas quando o amor se mantém por pura conveniência narrativa, sem conflito, sem nuance, sem transformação… a coisa desanda.
É o que vemos em personagens que caem de joelhos pelo típico “homem misterioso” que não fala, não escuta, e ainda agride — mas, mesmo assim, é pintado como irresistível. A gente não entende por que a personagem se apega. A única explicação possível é: “porque o roteiro manda”.
Em Anna Kariênina, a paixão de Anna por Vronsky também tem algo de autodestrutivo — mas Tolstói trabalha isso com complexidade. A gente vê os motivos dela, mesmo sem concordar com todos. Vê a hesitação, a culpa, o desejo, a vaidade, o medo. E isso nos prende. Porque ali há contradição humana — não só função de cena.
E por que isso importa?
Porque personagens mal escritos não só tornam o livro menos interessante — eles esvaziam sua capacidade de gerar reflexão. Quando a gente se apega a personagens sem motivação, a gente começa a achar normal que as coisas só aconteçam. Que tudo mude sem construção. Que qualquer dor possa ser esquecida numa página.
A boa literatura faz o oposto. Ela nos ensina a reconhecer a transformação verdadeira — aquela que dói, que leva tempo, que não se resolve em três frases. E quando encontramos personagens assim, bem feitos, com contradições, com silêncios, com gestos que dizem mais que mil adjetivos… a gente entende por que ainda vale a pena ler com atenção.
Eu fiz um vídeo pro meu canal de YouTube onde leio os trechos mais absurdos de É Assim Que Acaba e comparo com a construção minuciosa de Anna Kariênina – uns dos meus livros favoritos.
Vem rir (e pensar) comigo.
Pode assistir aqui mesmo sem sair do Substack:
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