Kafka escreveu sobre um inseto — mas falou sobre a gente
Quando Gregor Samsa acorda transformado, a reação da família revela mais que mil diálogos.
Você pode achar absurdo: um homem que vira um inseto da noite para o dia. Mas o que realmente perturba em A Metamorfose não é o impossível — é o que há de mais possível ali. O que nos prende ao conto de Kafka não é a casca grossa, nem as patinhas tremulando no ar. É a forma como as pessoas ao redor de Gregor lidam com sua transformação. E, principalmente, com sua inutilidade.
Antes de virar um bicho, Gregor era um trabalhador dedicado. Caixeiro viajante. Tinha um emprego que detestava, mas o carregava como um dever moral, sustentando pai, mãe e irmã. Trabalhava para que os outros não precisassem trabalhar.
Quando acorda em forma de inseto, sua primeira preocupação não é com o que aconteceu com o corpo — é com o trem das 7h.
Ele não pensa: “me tornei uma aberração”. Ele pensa: “vou me atrasar”.
Essa inversão é o que Kafka faz de melhor. Ele mostra como a identidade de Gregor estava tão fundida à ideia de trabalho que, mesmo diante do colapso do corpo, ele só enxerga o relógio. Não há espaço para o espanto. Há metas a cumprir. E é nesse ponto que A Metamorfose deixa de ser fábula e vira diagnóstico.
Gregor não foi desumanizado quando virou inseto. Ele já estava desumanizado desde antes.
No início do conto, a família está em choque. Mas não por amor. Por medo. Medo do que aquela criatura — agora trancada no quarto — representa. Medo de perder o sustento. Medo da vergonha. Medo da responsabilidade que, por anos, foi terceirizada para Gregor.
E é aí que está a perversidade: a transformação de Gregor apenas revela o que já estava em curso.
O pai, que não trabalhava havia anos. A mãe, que pouco se envolvia com o filho. A irmã, que sonhava em estudar música, sustentada pelo esforço alheio. Todos aceitaram sua dedicação enquanto ela era útil. Quando deixou de ser, passaram a tratá-lo como fardo. Ou pior: como um incômodo.
E quantas vezes isso acontece fora da literatura?
Pessoas que são a base da família até que adoeçam. Até que percam o emprego. Até que deixem de funcionar. E então são “difíceis”. “Negativas”. “Problemáticas”. Kafka escreve sobre isso com uma frieza que incomoda. Porque no fundo sabemos que já vimos isso acontecer. Talvez até tenhamos feito parte disso.
Somos uma carga quando deixamos de ser úteis, e a sociedade nos joga em uma cela de isolamento.
Ao longo da narrativa, o quarto de Gregor vai se tornando mais hostil. Tiram os móveis, trancam a porta, limitam seus movimentos. A irmã — a única que demonstrava cuidado — é quem propõe que ele seja eliminado. O pai, em um momento de fúria, arremessa maçãs. Uma delas perfura o corpo de Gregor. A ferida apodrece. E ele começa a definhar.
Quando a faxineira encontra o corpo, já seco e morto, a reação da família é... alívio.
“Agora podemos agradecer a Deus”, diz o pai.
Não há luto. Não há remorso. Há uma paz inquietante, como se um problema tivesse sido resolvido. E isso é o que mais assusta: a normalidade com que a morte é tratada, desde que o morto já não servia para nada.
Kafka escreveu sobre um inseto. Mas falou sobre a gente.
Falou sobre a lógica da utilidade. Sobre relações baseadas em performance. Sobre como o valor de alguém pode ser reduzido à sua capacidade de entregar, de sustentar, de manter tudo funcionando.
E falou também sobre o silêncio. Gregor quase não fala no conto. Literalmente — porque virou inseto. Mas simbolicamente também: porque nunca foi ouvido. Quando podia trabalhar, não havia espaço para conversa. Quando deixou de trabalhar, não havia interesse. E essa ausência de escuta transforma qualquer lar em cela.
Kafka não precisava gritar para mostrar o absurdo. Ele escreveu com a ponta da faca, não com o cabo. E é por isso que o conto, mais de cem anos depois, ainda corta.
P.S.: Fiz um vídeo falando sobre este conto de Kafka. Pode assistir aqui embaixo ou ir pro canal aqui no link e se inscrever para receber novos vídeos.
Esse conto me fez refletir sobre o cansaço e desgaste das relações, algo que eu já estava começando a perceber: quando a ficamos tempo demais ao lado de uma pessoa, ela se cansa da gente. E de repente... Você se transformou num inseto! Kkkk Genial! Eu fui pesquisar no chatgpt e descobri que essa minha desconfiança é um fenômeno analisado pela psicologia. Cansaço relacional. Fadiga emocional. A taxa de divórcio em todos os países que impuseram o Lockdown para combater a pandemia cresceu significativamente. Para mim, é claro que se tornar um inseto é questão de tempo. É preciso ter coragem de se ausentar das pessoas, um pouco - só para equilibrar essa relação entre disponibilidade e escassez. Como escreveu Mário Sérgio Costela, em português que fazemos o que fazemos: "É preciso produzir saudade nas pessoas. (...) Nós somos seres de insatisfação" (p.113). É isso. Prepare-se para ser um peso para as pessoas. Como você vai lidar com isso?
Livro: por que fazemos o que fazemos: aflições vitais sobre trabalho, carreira e realização.